TRAÇANDO A LITERATURA
Acabo de ler um miniconto de Paulo Corrêa Lopes, a História de uma Traça, cujo início transcrevo aqui.
“Conheci uma traça que se tornou espírita por ter passado uma temporada dentro de um volume de Allan Kardec.”
“Nunca vi espetáculo mais engraçado do que ouvi-la dissertar sobre a teoria da reencarnação para o aperfeiçoamento das almas.”
“Por mais que eu tentasse convencê-la do absurdo do espiritismo, nada pude conseguir. Parece que a traça sentia certo bem-estar íntimo.”
Ora! Uma traça com a virtude da leitura, não tive dúvidas, abri o livro do escritor gaúcho, falecido em 1957 e sabedor, a essa altura do tempo, se a traça estava certa ou errada.
E lá estava a bichinha entre as folhas!
Como andava fraquinha, por conta de tantos anos sem nada comer, eu a coloquei em um livro do Paulo Coelho. Ela engordou bastante, mas não falou nada sobre o que havia consumido.
Esperei emagrecer um pouco e voltei a deixá-la no interior de outro livro. Desta vez, no falado “50 Tons de Cinza”. Quando abri o volume, dias depois, ela me apresentou seus 50 filhotinhos.
Mais uma vez, eu a pus em um livro, de cujo autor não tenho a minha mínima admiração literária. Afinal, se ela o comesse todo, não me faria falta.
No outro dia, encontrei o livro no chão, praticamente intacto. Abri as suas páginas e senti o ódio da traça, gritando comigo: - Você não tem coisa melhor para oferecer aos seus convidados?
Envergonhado, despejei-a no O Capital, de Karl Marx.
Tempos depois, mais uma vez, me lembrei da minha tracinha de estimação e fui vê-la em seu novo habitat comunista.
Com a boina do Che Guevara, ela estava meditabunda na capa do livro. Olhou para mim de soslaio e comentou:
- Camarada, você é um traidor da Revolução! Eu senti, pelo gosto do papel, que este livro está com você há muitos anos. Por conta desse viés capitalista da sua personalidade, você não repassou o conhecimento para os irmãos trabalhadores. É aquele egoísmo semelhante ao de quem busca a mais valia. Livros, só se deve guardar os de consultas, para o conhecimento não ficar esquecido no armário. A ignorância é a arma das classes dominantes!
Para me penitenciar, decidi: - Dona traça, vou colocar você na Bíblia, mas não coma o Cântico dos Cânticos, por ser a parte mais apreciada por mim.
Pois foi o mesmo que dizer coma tudo. Ela já havia comido o Gênesis, o Levítico e outros 15 livros, quando eu me dei pelo exagero de seu estômago.
Fiquei bravo e ameacei colocá-la em um caderno com folhas em branco. Ela se revoltou e bradou:
- Ó Deus do meu louvor, não te cales, pois a boca do ímpio e a boca fraudulenta estão abertas contra mim; tem falado contra mim com uma língua mentirosa. Eles me cercaram com palavras odiosas e pelejaram contra mim sem causa. Em paga do meu amor, são meus adversários: mas eu faço oração. Deram-me mal pelo bem e ódio pelo meu amor. (Salmo 109)
Sentindo ter me aborrecido e diante de uma vingança possivelmente fatal, ela me propôs um acordo: - Pode me colocar em um livro escrito por você mesmo. Prometo não ler nem refletir; só comerei as bordas em branco, para não estragar a sua obra.
Como eu já estava cansado, querendo me livrar daquele inseto petulante, informei: - Prezada Senhora Traça, atualmente, nós escrevemos textos e livros eletrônicos, até mesmo para não gastar o papel, agindo assim de forma ecologicamente correta.
E com o gostinho da vingança, complementei: - Portanto, tracinha metida, seu futuro é a extinção da espécie. Há! Há! Há!
Dizendo-se arrependida, ela me olhou com tristeza e, de cabeça baixa, fez beicinho.
Isso mexeu com o meu coração e, então, resolvi permitir a ela continuar
vivendo em um livro. Mas, agora, mais esperto, pensei naqueles volumes desnecessários, quase inócuos.
Optei por um de autoajuda.
Sérgio Antunes de Freitas
Junho de 2013

