... como o arroz e o feijão, a pipoca e o filme, o pé descalço e a goiabeira, o terreiro e a bola, a mão em concha e a água cristalina.
Lembra domingo, lembra Natal.
Lembra infância, lembra eternidade.
As duas juntas formam uma espécie de coringa na poesia.
Quando se fala em deus-menino, sente-se o gosto da uva, o afago da materna na cabeça.
Imagina-se o menino-deus pulando as lajotas do passeio, no brinquedo da amarelinha. Sentado no tronco seco, sonhando com um futuro de herói, de policial, de motorista de caminhão. No barranco, jogando pedras e partes de galhos na água do rio.
Imagina-se o deus-menino pulando as nuvens, fazendo peraltices, como conta a poesia do Mário Quintana, o poeta passarinho, o menino passarinho, o poeta menino. E quantos poetas, com almas de meninos, endeusaram essa criatura meio anjo, meio bandido?
Em sua inocente maldade, ele faz sua própria rotina, quebrando as cercas pela frente, furtando as mangas, mexericas e carambolas no pomar do velho mesquinho, fazendo de alvo os alvos lençóis nos varais da vizinha, usando bolas de barro e frutas apodrecidas.
Esconde bengalas e surrupia os trocados da caixa do santo. Mas, depois, confessa, para sentir a alma leve, por não saber que meninos não têm pecados.
Para não perder tempo, parando as vadiagens, faz xixi atrás de qualquer árvore, na sarjeta ou dentro de garrafas vazias, para treinar a mira.
Muitas vezes, escapa das merecidas surras.
Sem fronteiras, o menino deificado se aventura no mundo, ignorando o fato de deixar corações apreensivos, sonos intranquilos, mãos nervosas, saudades insuportáveis.
Vestido de esportista, adentra os gramados internacionais e, como um guerreiro moderno, golpeia, digo, goleia exércitos inimigos.
Adentra quadras adversárias e surpreende equipes superiores, usando de sua malícia.
Mergulha em piscinas desconhecidas, corre em raias estranhas, atrás de simples medalhas, mais valiosas para um povo, do que para ele próprio.
Como um cão vira-lata, cria o inesperado, supera os obstáculos mais desconhecidos, traz alegria e glória para os seus torcedores, como se fosse, de fato, um semideus.
E quando, por um deslize em seu preparo para a glória, um desses ídolos demonstra sua verdadeira face, percebe-se não ter deixado de ser o inocente moleque. Assim, é possível ver seu passado, presente e futuro de sua versão mais fiel, a de filhote desprotegido, como todos os meninos são.
Imagina-se, então, a mãe ralhando com o filho levado: - Deus, o que eu faço com esse menino?
Imagina-se a mãe rogando, em silêncio, pelo filho adoentado: - Deus, cuida deste menino.
E o chamamento da mulher amada? – Vem cá, menino!
E o reclamo da mulher amante? -Tira a mão daí, menino.
E a mudança de clima! - Vem cá, menino. Vem cá, moleque!
- Como eu amo você, menino!
- Como eu amo você, moleque!
- Como eu amo você, meu Deus!
Sérgio Antunes de Freitas
Novembro de 2009
nunca tinha lido essa. ❤️✨